terça-feira, 12 de abril de 2011

O nascimento do amor - O Banquete, 203b-204b, Platão




De que pai ele nasceu, perguntei, e de que mãe? – É uma história um tanto longa; mesmo assim vou contá-la a ti. No dia em que Afrodite nasceu, os deuses deram um banquete. Com eles estava o filho de Métis, Poros. Depois do Jantar, Penia tinha vindo mendigar, o que é natural num dia de abundância de comidas e bebidas, e mantinha-se perto da porta. Poros, que se tinha embriagado com néctar (pois o vinho não existia ainda), entrou no jardim de Zeus e, entorpecido, adormeceu. Penia, na sua penúria, teve a idéia de ter um filho de Poros; deitou-se junto a ele e concebeu o Amor. É por isso que o Amor se tornou companheiro de Afrodite e seu servidor. Concebido por ocasião das festas pelo nascimento dela, por sua própria natureza, ama o belo – a Afrodite é bela.
            Então, sendo filho de Poros e de Penia, o Amor acha-se na seguinte situação: por um lado, é sempre pobre, e, longe de ser delicado e belo como acredita a maioria das pessoas, é, pelo contrário, rude, desagradável, caminha pelo mundo de pés descalços, não tem morada, dorme sempre no chão duro, ao ar livre, perto das portas e nos caminhos, pois puxou à mãe; e a necessidade acompanha-o sempre. Por outro lado, a exemplo de seu pai, está sempre à espreita do que é belo e do que é bom; é viril, resoluto, ardente, é um caçador de primeira ordem, está sempre inventando manhas; aspira ao saber e sabe encontrar as passagens que o levam a ele; passa todo o tempo de sua vida filosofando; é um maravilhoso feiticeiro, e mágico, e sofista. É preciso acrescentar ainda que, por natureza, não é imortal nem mortal. Num mesmo dia, ora floresce e vive, ora morre; depois revive quando por ele perpassam os recursos que deve à natureza de seu pai, mas o que se passa nele, incessantemente, lhe escapa; assim sendo, o Amor não está jamais na indigência nem na opulência.
            Por outro lado, mantém-se entre o saber e a ignorância; e eis o que acontece: nenhum deus se ocupa em filosofar nem deseja se tornar sábio, pois já o é. E, de uma maneira geral, quando se é sábio não se filosofa; mas os ignorantes, também eles, não filosofam e não desejam se tornar sábios. É isso justamente que é deplorável na ignorância: não se é belo, nem bom, nem inteligente e, no entanto, se acredita sê-lo. Não se deseja uma coisa quando não se sente a sua falta. – Quem são, Diotima, perguntei, os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? – É muito claro, respondeu, até uma criança o veria imediatamente: os que se encontram entre os dois; e o Amor deve estar entre eles. A ciência, com efeito, está incluída entre as coisas mais belas; ora, o Amor é amor pelo belo; impõe-se, portanto, que o Amor seja filósofo e, por ser filósofo, que esteja no meio-termo entre o sábio e o ignorante. A causa disso está na origem, pois ele nasceu de um pai sábio e cheio de recursos e de uma mãe desprovida tanto de ciência quanto de recursos. É essa, meu caro Sócrates, a natureza desse demônio.

            Platão, Obras Completas. O Banquete, 203b-204b

PARA NOSSA REFLEXÃO:
1) Do que fala o mito?


Da natureza ambígua, súbita e imprevisível do Amor (um demônio), que pode ser de tão sorte despojada, padecendo de grandes privações para realizar este propósito de entrega e, ao mesmo tempo, possessivo, egoísta, capaz de astúcias para manter prisioneiro o objeto de sua possessão. Pelo amor se morre, pelo amor se mata O poeta Carlos Drummond fala assim sobre esta natureza mutante do amor:.  

(...) Amor é compromisso
com algo mais terrível do que o amor?(...)

(Poema: Mineração do Outro)


2) Qual é a função deste tipo de linguagem (mítica ou alegórica) utilizada por Platão neste trecho?

Através de imagens e simbolismo Platão trata um conceito extremamente complexo – como a natureza do Amor – usando uma linguagem acessível para a maioria das pessoas.


3) Qual é a relação entre o Amor a Filosofia? Porque Platão utiliza-se do Amor para definir a Filosofia?

Ora, em sua própria definição está a resposta, pois a Filosofia é a arte de amar a sabedoria.

3 comentários:

  1. Acho que a natureza do Amor, filho do engenho e da necessidade, já garante essa natureza de buscador:há um mínimo de capacitação e um dar-se conta do que não tem, e que por lógica há de se buscar, assim natureza do filósofo é um ciente do que lhe falta, e que ele quer sanar, e contudo alguém com as condições limitadas pra conseguir. O que garante um paradoxo:o que dá a noção do que buscar é o mesmo que limita a sua condição de consegui-lo.
    Me parece um pouco do que Kant irá apontar sobre a Dialética Transcendental, as categorias que fornecem as condições do homem buscar o conhecimento são as mesmas categorias que limitam o acesso ao conhecimento que ele mais quer.

    ResponderExcluir